FANTASIA E PENSAMENTO MÁGICO
- Milena Rossetti
- 13 de mai. de 2017
- 9 min de leitura

Quando convidada a escrever sobre fantasia e pensamento mágico, muitas dúvidas surgiram com relação a real contribuição que poderia oferecer as pessoas que assim como eu os observam nas crianças e buscam avaliar sua função, levando-se em conta sua forma de manifestação.
Nesse sentido, penso ser necessário conhecermos o padrão de desenvolvimento cognitivo de crianças que é constituído da tomada de consciência de si própria, do seu corpo, dos seus movimentos corporais e pela ampliação das capacidades de linguagem e comunicação.
Sendo assim, para situar o leitor, entre tantas referências possíveis de se consultar, apoio minha análise sobre a teoria cognitiva proposta por Piaget que estudou os processos do desenvolvimento do pensamento, da infância à idade adulta. Descreveu as mudanças qualitativas do desenvolvimento do funcionamento do pensamento infantil, em estádios sequenciados de aquisições de habilidades, cada vez mais elaboradas.
Em sua teoria a criança é agente ativa no processo de seu próprio desenvolvimento pela maturação aliada à estimulação do meio, uma vez que, trata-se de uma visão interacionista, no qual o organismo e o meio interagem e produzem o desenvolvimento num paralelismo entre desenvolvimento biológico e mental, à partir de uma epistemologia genética, sendo a capacidade de adaptação ao meio algo que é herdado.
Nesta concepção, o indivíduo herda a base da constituição de suas estruturas sensoriais e neurológicas, que servem de base ao surgimento e desenvolvimento das estruturas mentais, pela interação organismo-meio. Estas estruturas são equipamentos biológicos compostos de estruturas inatas e físico-orgânicas e neurológicas. Ex.: os reflexos.
A inteligência então é a forma de equilíbrio e adaptação destas estruturas mentais que se organizam por meio de três processos: adaptação, assimilação e acomodação.
A adaptação corresponde às formas de interação com o ambiente, acompanhando mudanças da realidade externa, adaptando ações a essa realidade. A assimilação é o processo de utilização do que já se sabe, para resolver situações novas. E a acomodação é o processo no qual ocorre a modificação do que já se sabe para poder resolver novas situações.
No entanto, é preciso também considerar os esquemas e a equilibração. O primeiro refere-se à procedimentos de ação na interação indivíduo meio. Evoluem de formas arcaicas (reflexos), àqueles elaborados mentalmente (abstratos). É um padrão de comportamento ou ação. A equilibração é uma tendência a permanente organização-reorganização das estruturas mentais. O equilíbrio é igual ao ajustamento harmonioso entre ações mentais e o ambiente.
Nesse sentido, o desenvolvimento cognitivo se dá a partir da evolução de
quatro estádios de desenvolvimento, ou seja, o estádio Sensório-Motor (0-2 anos), o estádio Pré-Operatório (2-6 anos); o estádio Concreto (6-12 anos), e o estádio Formal (a partir dos 12 anos).
No estádio sensório-motor, a criança apreende o mundo pela percepção e ação, nasce com esquemas reflexos, em contato com a estimulação do meio e vai evoluindo pelo processo de adaptação, através da assimilação e acomodação.
Este estádio divide-se em seis substádios: reflexos (0-1 mês), reações circulares primárias (1-4 meses), reações circulares secundárias (4-8 meses) coordenação de esquemas secundários (8-12 meses) reações circulares terciaárias (12-18 meses), início do pensamento representativo (18-24 meses). As principais aquisições deste estádio são a permanência de objeto, o início do simbolismo e a aquisição da linguagem.
Entretanto, para discorrer sobre o tema fantasia e pensamento mágico, focalizarei minha narrativa no segundo estádio, o Pré-Operatório, com uma breve descrição, na tentativa de pensarmos na estrutura cognitiva que possibilita a emissão de comportamentos verbais e não verbais que expressam a fantasia e o pensamento mágico em crianças nesta fase do desenvolvimento.
Este estádio é fundamental para o desenvolvimento da criança.
Apesar de ainda não conseguir efetuar operações, a criança já usa a inteligência e o pensamento. Este é organizado através do processo de assimilação, acomodação e adaptação. Neste estádio a criança já é capaz de representar as suas vivências e a sua realidade, através de diferentes significantes:
Jogo:
Para Piaget o jogo mais importante é o jogo simbólico no qual predomina a assimilação de experiências vividas pelas crianças em seu cotidiano (Ex. : é o jogo do faz de conta, "brincam de serem os pais", "professores", "médicos"). O jogo de construções transforma-se em jogo simbólico com o predomínio da assimilação (Ex. : Lego - a criança diz que a sua construção é, por exemplo, uma casa. No entanto, para os adultos "é tudo menos uma casa").
Inicialmente (em torno do dois anos), a criança fala sozinha porque o seu pensamento ainda não está organizado, só com o decorrer deste período é que o começa a organizar, associando os acontecimentos com a linguagem na sua ação.
A criança ao jogar está organizando e conhecendo o mundo, por outro lado, o jogo também funciona como "terapia" na libertação das suas angústias. Além disto, através do jogo também podemos observar a relação familiar da criança ou como ela a percebe (Ex. : Quando a criança brinca com as bonecas pode mostrar a sua falta de amor por parte da mãe através da violência com que brinca com elas).
Desenho:
Até aos dois anos a criança só faz riscos, sem qualquer sentido, porque, para ela, o desenho não tem qualquer significado.
A criança, aos três anos aproximadamente, já atribui significado ao desenho, fazendo riscos na horizontal, na vertical, espirais, círculos, no entanto, não dá nome ao que desenha. Tem uma imagem mental depois de criar o desenho. Mas aos quatro anos a criança já é mais criativa e começa a perceber os seus desenho e projeta no desenho o que sente. De um modo geral, podemos dizer que, neste estádio, o desenho representa a fase mais criativa e diversificada da criança.
A criança projeta nos seus desenhos a realidade que ela vive, não há realismo na cor, e também não há preocupação com os tamanhos. Nesta fase os desenhos começam a ser mais compreensíveis pelos adultos. A criança vai desenhar as coisas à sua maneira e segundo os seus esquemas de ação e não se preocupa com o realismo. Também aqui a criança vai utilizar a assimilação.
Linguagem
Durante os 2/3 anos, a criança começa a usar sequências de três elementos sob a forma telegráfica, como por exemplo, “nenê como pão”, nomeia objetos familiares e cores primárias (vermelho, azul, amarelo, etc). Pelo fato de estar desperta para a realidade exterior, a criança começa a questionar as ações utilizando o “Porque?”, compreendendo o “Onde?” e o “Como?”. Consegue ainda, nesta fase, constituir frases simples, com verbos, preposições, adjectivos e advérbios de lugar e ainda identificar objectos familiares e descrever o seu uso.
Entretanto a linguagem, neste período, ainda é muito egocêntrica, pouco socializada, ou seja, está centrada na própria criança. Ela não consegue distinguir o ponto de vista próprio, do ponto de vista do outro e, por isso, revela certa confusão entre o pessoal e o social, o subjetivo e o objetivo. Este egocentrismo não significa egoísmo moral. Para Piaget, traduz, "por um lado, a primazia da satisfação sobre a constatação objetiva[...] e, por outro, a deformação do real em função da ação e ponto de vista próprios. Nos dois casos, não tem consciência de si mesmo, sendo sobretudo uma indiferenciação entre o subjetivo e o objetivo [...]"
Isto manifesta-se através dos monólogos e dos monólogos coletivos, (Ex. : às vezes ao observarmos um grupo de crianças falando ao mesmo tempo, temos a impressão de estarem conversando umas com as outras, mas não, estão sim todas falando sozinhas e ao mesmo tempo, ou seja, cada uma está no seu monólogo e assim manifestando o seu egocentrismo).
O termo egocentrismo, característica descritiva do pensamento pré-operatório, foi progressivamente sendo utilizado por Piaget, que o substitui pelo termo descentração.
A partir dos dois anos dá-se uma enorme evolução na linguagem, a título de exemplo, uma criança de dois anos compreende entre 200 a 300 palavras, enquanto que uma de cinco anos compreende 2000. Este aumento do número de vocábulos é favorecido pela forte motivação dos pais, ou seja, quanto mais forem estimuladas (canções, jogos, histórias , etc.), melhor desenvolvem a sua linguagem. Neste estádio a criança aprende, sobretudo, de forma intuitiva, isto é, realiza livres associações, fantasias e atribui significados únicos e lógicos.
Se atentarmos a uma experiência muito conhecida de Piaget em que é dado a uma criança dois copos de água com igual quantidade de líquido, embora um alto e estreito e outro baixo e largo, intuitivamente a criança escolhe o copo alto pois no seu entender este parece conter mais água.
Imagem e pensamento:
A imagem mental é o suporte para o pensamento. A criança possui imagens estáticas tendo dificuldade em dar-lhe dinamismo. O pensamento existe porque há imagem. É um pensamento egocêntrico porque há o predomínio da assimilação, é artificial. Na organização do mundo a criança dá explicações pouco lógicas.
Entre os 2 e os 7 anos distinguem-se dois subestádios: o do pensamento pré-conceitual e o do pensamento intuitivo.
No pensamento pré-conceitual domina um pensamento mágico, onde os desejos se tornam realidade e que possui também as seguintes características:
Animismo
A criança vai dar características humanas a seres inanimados. Este animismo vai desaparecendo progressivamente, aqui ressalta-se a importância do papel do adulto, na medida que, a partir, sensivelmente dos cinco anos, não deve reforçar, mas sim atenuar o animismo.
Realismo
A realidade é construída pela criança. Se no animismo ela dá vida às coisas, no realismo dá corpo, isto é, materializa as suas fantasias. Se sonhou que o lobo está no corredor, pode ter medo de sair do quarto.
Finalismo
Existe uma relação entre o finalismo e a causalidade. A criança ao olhar o mundo tenta explicar o que vê, ela diz que se as coisas existem têm de ter uma finalidade, no entanto, esta ainda é muito egocêntrica. Tudo o que existe, existe para o bem essencial dela própria. Também aqui o adulto reforça o finalismo. Vai diminuindo progressivamente ao longo do estádio, apesar de persistir mais tempo que o animismo, devido às atitudes e respostas que os adultos dão às crianças.
Com o decorrer do tempo, os pais terão de ensinar, à criança, novos conceitos, de modo que futuramente ela não tenha dificuldade em aprendê-los.
Artificialismo
É a explicação de fenômenos naturais como se fossem produzidos pelos seres humanos para lhes servir como todos os outros objetos: o Sol foi aceso por um fósforo gigante; a praia tem areia para nós brincarmos.
Para concluir a abordagem a este subestádio é importante referir que a criança ao se conectar com o meio de forma ativa estará favorecendo sua aprendizagem de uma forma criativa e original.
Este estádio é fundamental, pois a criança aprende de forma rápida e flexível, inicia-se o pensamento simbólico, em que as ideias dão lugar á experiência concreta. As crianças conseguem já partilhar socialmente as aprendizagens fruto do desenvolvimento e da sua comunicação.
Com relação ao pensamento intuitivo, este surge a partir dos quatro anos, permitindo que a criança resolva determinados problemas, mas este pensamento é irreversível, isto é, a criança está sujeita às configurações perceptivas sem compreender a diferença entre as transformações reais e aparentes.
Na criança de quatro ou cinco anos com o pensamento intuitivo, a organização mental que surge permite resolver determinados problemas baseados na percepção de dados sensoriais. Segundo Piaget, a criança responde às questões colocadas com base na aparência, ou seja, com base nos dados imediatos da percepção. Por exemplo: A criança, depois de constatar que dois copos têm a mesma quantidade de água, se diante da criança se verter o liquido de um dos recipientes para um copo mais alto e mais fino, a criança responderá que este tem maior quantidade de água.
Para demonstrar esta irreversibilidade Piaget questionou uma criança de quatro anos de idade:
P: “Tens uma irmã?”
R: Sim.
P: “A Tua irmã tem uma irmã?”
R: Não. Ela não tem uma irmã, eu sou a minha irmã.
Através das respostas dadas pela criança, percebeu a grande dificuldade que as crianças têm em compreender a reversibilidade das relações. Logo, o tipo de pensamento é irreversível para a criança, isto é, a criança está sujeita às configurações perceptivas sem compreender a diferença entre as transformações reais e aparentes, não tem mobilidade suficiente para compreender que quando uma determinada ação já está realizada podemos voltar atrás. Desta forma, podemos dizer que as estruturas mentais neste estádio são amplamente intuitivas, livres e altamente imaginativas.
Diante do exposto, cabe aos familiares e profissionais da educação e saúde oferecer recursos apropriados a esta fase do desenvolvimento, quer seja para estimular nossas crianças, quer seja para avaliar possíveis atrasos cognitivos, levando sempre em conta esta organização mental, que vem sendo testada empiricamente ao longo dos anos após ser descrita.
Com relação à estimulação ou a avaliação educacional ou clínica, jamais devemos permitir a banalização de recursos que permitem a criança fantasiar ou apresentar pensamentos mágicos, como os contos de fadas, pois sua função cultural e terapêutica (já que facilita a identificação com heróis que viveram os mesmos conflitos da criança) ainda são de extrema importância uma vez que constituem ferramentas de auxílio na promoção de saúde e aprendizado destes indivíduos.
Para saber mais:
Jean Piaget (1986). A psicologia da criança. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Difel.
Jean Piaget (1987). O nascimento da inteligência na criança. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC.
Jean Piaget (2005). A representação do mundo na criança: com o concurso de onze colaboradores. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Idéias & Letras.
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